Na semana em que o MP-AP, através do promotor Afonso Pereira, instaura Inquérito Civil para apurar acúmulo ilegal de cargos em órgãos públicos do Estado do Amapá, é extremamente necessário que os professores leiam atentamente a análise do jurista Thiago Mondo Zapelini.
Em todas as esferas da Administração Pública, a regra é a vedação da
acumulação de cargos públicos. Entretanto, como diz o velho ditado: “Para toda
regra há, pelo menos, uma exceção”. Nesse caso, as exceções estão arroladas nas
alíneas a, b e c, do
inciso XVI, do artigo 37 da Constituição da Republica Federativa do Brasil,
além do art. 38,
inciso III (com relação aos vereadores),
art. 95, Parágrafo Único, inciso I (no que tange os magistrados) e
art. 128, § 5º, inciso II, alínea d (para
os membros do Ministério Público).
Uma das permissões constitucionais para a acumulação de cargos públicos
é a de um indivíduo exercer dois cargos de professor, desde que haja
compatibilidade de horários e sua remuneração não extrapole o teto mencionado
no inciso XI do artigo 37 da Constituição. Ocorre que, apesar da clara
redação do artigo 37, inciso XVI, alínea a, o tema gera inúmeras discussões em
processos administrativos disciplinares e em ações judiciais, pela boa, ou má,
interpretação do mencionado dispositivo legal.
Com relação à mencionada permissão, muitas demandas são formadas em
razão de o ente público entender que há incompatibilidade de horários pelo fato
de um individuo exercer dois cargos de professor, com quarenta horas semanais
cada um, para duas instituições educacionais do poder público. Acontece que
mesmo aparentemente ser uma situação extremamente desgastante para o servidor,
nem sempre o é. Além disso, havendo compatibilidade de horários, não há razão
para o Estado (latu sensu) impedir que um cidadão possua dois cargos de
professor. Caso contrario, estaria cometendo um ato inconstitucional, conforme
se demonstrará.
Partindo da interpretação
teleológica, que contempla o elemento finalístico da norma, ou seja, o fim para
o qual ela foi elaborada, se extrai que a autorização constitucional deste
acúmulo “num primeiro momento, ao permitir a acumulação remunerada de dois
cargos de professor (art. 37, XVI, a), pretendeu fomentar a educação no País,
e, num segundo momento, ao autorizar a acumulação remunerada de um cargo de
professor com outro cargo técnico ou científico (art. 37, XVI, b), visou
salvaguardar a própria sobrevivência do docente, dado o baixo nível dos
vencimentos (todos sabem) que os profissionais do magistério sempre auferiram
no Brasil”[1]
Por isso, deve-se prevalecer,
em última análise, as supra referidas finalidades desta norma, apenas proibindo
o acúmulo de dois cargos de professor quando ocorrer a incompatibilidade de
horários ou quando sua remuneração superar o teto constitucional. Como se trata
de uma norma restritiva, a interpretação correta é a restritiva, ou seja, não
se pode ampliar as restrições da norma. Se as restrições são apenas a
compatibilidade de horário, dois cargos de professor, e a remuneração não
superior ao teto, não é razoável, nem constitucional, que se crie outros
critérios, se não esses.
Entretanto, os entes da
Federação tem, lamentavelmente, editado atos (decretos, portarias, instruções
normativas, etc.) impondo um limite de horários para aqueles servidores que
possuem dois cargos de professor, em flagrante desrespeito ao comando
constitucional do art. 37, inciso XVI, alínea a da C. R. F. B. O mais clássico
ato administrativo sobre o tema, e que conturbou por muito tempo a correta
interpretação do instituto, foi o parecer da Advocacia Geral da União GQ-145,
aprovado pelo Presidente da República em 30 de março de 1998.
No aludido parecer, a AGU se
manifestou no sentido de que a acumulação de dois cargos de professor com 40
(quarenta) horas semanais cada, geraria inúmeros prejuízos ao próprio servidor
e ao serviço público. Razoou essa conclusão pelos desgastes físicos e mentais
que os professores submetidos à essa jornada sofreriam e ignorou o fato de a
carga horária dos profissionais da educação ser destinada, também, para
pesquisa, atendimento aos alunos, resolução de trabalhos e provas, tornando
possível o cumprimento das oitenta horas semanais não só na sala de aula.
Corroborando o entendimento da AGU, o Ministério do Planejamento,
Orçamento e Gestão limitou a carga horária dos professores para 60 (sessenta)
horas semanais, ao editar o ofício-circular nº 10, de 26 de fevereiro de 2002.
Com a elaboração desse ato, a União, através daquele Ministério, criou novo
critério para a acumulação de cargos públicos. Todavia, não cabe ao Poder
Executivo criar restrições não previstas na Constituição, sobre o assunto.
De outro lado, mesmo sendo
inconstitucional a imposição de limite na carga horária dos professores, não é
razoável aceitar o argumento de que o servidor, neste caso, terá uma jornada
humanamente impossível de se cumprir.
Regra geral, a hora-aula dos
professores contabiliza 50 (cinquenta) minutos, o que por si só já reduz a
jornada do servidor. Além disso, deve-se reservar tempo para estudo,
planejamento, elaboração e correção de provas, trabalhos, que está incluído na
carga horária do professor.
Isso decorre do comando legal instituído pelo artigo 67, inciso V da Lei nº 9.394/96
(Lei
de Diretrizes e Bases da Educacao Nacional), ao aludir que “os
sistemas de ensino promoverão a valorização dos profissionais da educação,
assegurando-lhes, inclusive nos termos dos estatutos e dos planos de carreira
do magistério público (caput): período reservado a estudos, planejamento
e avaliação, incluído na carga de trabalho (inciso V)”. Além
do Decreto nº 5.773/06,
art. 69, parágrafo único: “O regime de trabalho
docente em tempo integral compreende a prestação de quarenta horas semanais de
trabalho na mesma instituição, nele reservado o tempo de pelo menos vinte
horas semanais para estudos, pesquisa, trabalhos de extensão, planejamento e
avaliação”.
Por isso, há professores que,
apesar de possuírem carga horária de 40 (quarenta) horas semanais, apenas
lecionam em 20 (vinte) dessas horas, sobrando outras vinte para pesquisa,
estudo, correção de provas e trabalhos, que podem ser usadas no momento mais
adequado ao servidor, ficando ao seu critério escolhê-lo. Assim, há como o
servidor usar esse tempo em casa, em sábados, domingos e em outros dias de
folga, o que reforça a ideia de não ser impossível uma pessoa exercer essa
jornada de oitenta horas semanais, e que não seria excessivamente desgastante
fazê-la.
Voltando à questão da
inconstitucionalidade da limitação de horário para o acumulo de cargos, há de
se reconhecer que qualquer tentativa de ampliação das restrições em acumular,
se não por emenda constitucional, é flagrante ato de inconstitucionalidade, o
que, em última análise, deve ser corrigido pelo Poder Judiciário.
Felizmente, os Magistrados tem
afastado essas ilegalidades, alegando que “cumpre à Administração Pública
comprovar a existência de incompatibilidade de horários em cada caso
específico, não bastando tão somente cotejar o somatório de horas trabalhadas
com o padrão derivado de um parecer ou mesmo de acórdão do Tribunal de Contas
da União.”[2]
“Tanto a Constituição Federal, em seu art. 37, XVI, como a Lei nº 8.112/90,
em seu art. 118, § 2º, condicionam a acumulação à
compatibilidade de horários, não fazendo qualquer referência à carga horária.
Sendo assim, desde que comprovada a compatibilidade de horários, (...) não há
que se falar em limitação da jornada de trabalho”[3].
“Ora, se a lei não estabeleceu abstrata e expressamente o limite da
carga horária passível de acumulação, não pode o intérprete inovar o
ordenamento jurídico mediante a criação de uma limitação abstrata, surpreender
os cidadãos destinatários da norma. Assim, pode um professor com regime de 40h
semanais cumular outro cargo de professor com regime também de 40h semanais,
restando 8h por dia para descanso.”[4]
A única ressalva para o tema
apresentado é no caso de o servidor estar em regime de dedicação exclusiva.
Nesses casos, ainda que haja compatibilidade de horários, não poderá o servidor
acumular cargos públicos, mesmo que sejam cargos acumuláveis.
Infere-se, então, que nenhum ato administrativo pode estabelecer
critérios para a acumulação de cargos públicos, se não aqueles já presentes
no texto constitucional. Ainda que seja
frequente a elaboração de atos impondo limite de horários, eles não merecem
prosperar, pois, são nitidamente inconstitucionais. Dessa forma, sendo os
cargos acumuláveis, havendo compatibilidade de horários e respeitado o teto
constitucional, não pode o poder público negar a acumulação.
“Assim, por ser a acumulação
um direito (nas hipóteses permitidas), há de se concluir que o servidor não
pode ser impedido de acumular.”[5]
Thiago Mondo Zappelini
[1] MAZZUOLI, Valério; ALVES, Waldir. Acumulação de
Cargos Públicos: uma questão de aplicação da Constituição; prefácio Ministro
Gilmar Ferreira Mendes. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013. P.
91.
[2]STJ MS 15415/DF, Rel. Min. Humberto Martins, Primeira Seção,
julgado em 13/04/2011, DJe 04/05/2011.
[3]TRF-2ª Região, AMS 2006510101220-5, Rel. Des. Sérgio
Schwaitzer, 7ª. T., DJ de 26/10/2006, p. 207.
[4] MAZZUOLI, Valério; ALVES, Waldir. Acumulação de
Cargos Públicos: uma questão de aplicação da Constituição; prefácio Ministro
Gilmar Ferreira Mendes. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013. P.
94.
[5] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito
administrativo. 29. Ed. São Paulo: Malheiros, 2012. P. 293.
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